Há, aproximadamente, duas semanas (12/06), a Câmara dos Deputados aprovou o regime de urgência para a votação do Projeto de Lei 1904/2024, que ganhou notoriedade através das mídias digitais e ficou conhecido como “PL do Aborto”.
O PL do Aborto
O intuito deste PL seria equiparar o aborto de toda e qualquer gestação acima de 22 (vinte e duas) semanas ao crime de homicídio.
A partir da aprovação da urgência, iniciaram-se diversos debates e críticas a respeito da finalidade deste projeto e de como a vida de crianças e mulheres poderia ser impactada caso o PL fosse aprovado. Ressalte-se que o Presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, informou a criação de uma comissão para debate exclusivamente desse PL, debate este que, após sofrer grande pressão por parte da população, acabou sendo postergado para o segundo semestre de 2024.
Para iniciarmos nossa conversa, caro leitor, trago-lhe a seguinte reflexão – que também pode ser lida como uma provocação: se os homens deixassem de praticar o estupro, será que precisaríamos nos deparar com tantos debates acerca das penas e condutas relacionadas ao aborto?
Na legislação atual, o aborto é punido com penas que variam de um a três anos de prisão, quando provocado pela gestante; de um a quatro anos, quando feito por um médico ou outra pessoa com consentimento da gestante; e de três a dez anos, para quem provocar o aborto sem o aval da mulher. Caso aprovado o PL, a pena poderá chegar aos 20 anos de prisão.
Necessária a discussão e a criação de mecanismos e diretrizes para o tema, que deve ser tratado como questão de saúde pública; todavia, ao que parece, o PL 1904/24 tem como objetivo apenas e tão somente criminalizar aquela mulher que já teve seus direitos veemente violados, esquecendo-se do principal causador: o estuprador. Isto é, a vítima enfrentaria uma pena ainda mais severa que a de seu algoz!
No Relatório Anual Socioeconômico da Mulher (Raseam), lançado em 24/04/2024, constou que, em 2022, foram registradas 67.626 ocorrências de estupros em mulheres no Brasil, o que equivale a, aproximadamente, um estupro a cada 8 (oito) minutos no país.
O Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2023, informou que, em 2022, de cada 4 (quatro estupros), 3 (três) foram cometidos contra pessoas “incapazes de consentir, fosse pela idade (menores de 14 anos), ou por qualquer outro motivo (deficiência, enfermidades etc).”. Ao que parece, estaria o Estado brasileiro mais preocupado com a criminalização de meninas e mulheres do que com o enfrentamento e a criação de medidas para que a prática do estupro seja coibida. Mais uma vez, são os corpos femininos submetidos ao crivo masculino, ou seja, aqueles que não gestam vidas e não enfrentam como as mulheres os riscos de serem estuprados.
Como se não bastasse o estigma, a dor e a vulnerabilidade, mulheres também poderão ser submetidas a processos criminais após a dor de um estupro. A cantora Rita Lee, no ano de 1997, em entrevista à Marília Gabriela, colocou em palavras o sentimento que traduz a forma como particularmente interpreto a questão do aborto (e de tantas amigas e mulheres em nossas conversas) ao dizer: “Somos todos contra o aborto. Não existe uma mulher que diga ‘fiz um aborto’, não tem sorrisos e gargalhadas. É um terror.”.
Quase 30 anos depois, ainda padecemos de políticas públicas no Brasil que reconheçam a prática do aborto e respeitem a vontade feminina.
Embora esta discussão esteja longe de acabar, há que se combater a política do absurdo e analisar o problema de maneira objetiva e consciente, diferentemente do objetivo da PL 1904.
Como dizia Simone de Beauvoir: “Basta uma crise política, econômica e religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados.”. Devemos, portanto, permanecer alertas e vigilantes, para que os retrocessos cessem. Que estejamos unidos e unidas, todos em prol de uma sociedade mais igualitária.