(Post escrito no ano passado, 10 anos da tragédia)
Tragédia Boate Kiss – Descaso, ganância, amadorismo e luta pela memória
Hoje, 29 de janeiro de 2.023 revirei os 10 anos da tragédia da Boate Kiss.
Assisti a tão comentada série da Netflix Todo Dia A Mesma Noite. O nome já é muito bem escolhido. E a série é bem boa. Como a série trata de fatos reais, mas personagens fictícios (baseados claros em personagens reais), fiquei curioso em conhecer as pessoas reais da tragédia da Kiss.
Sendo assim, emendei depois da série, o documentário de cinco episódios da Globoplay – A tragédia de Santa Maria. A série documental é dirigida pelo jornalista Marcelo Canelas que passou sua infância e juventude em Santa Maria.
Tanto a série da Netflix quanto da Globoplay trata da tragédia em si, mas da luta dos pais dos 242 jovens que morreram na tragédia e dos sobreviventes. A série ficcional é triste, emocionante e revoltante claro. O documentário é impactante, chocante e mais revoltante ainda.
Jaú..
No domingo, dia 27 de janeiro de 2.013, lembro-me me acordar tarde da noitada de balada e trampo do General e quando entro na internet uma avalanche de notícia da tragédia. Sensação estranha, triste e preocupante para quem se vivia de balada naquele momento.
Lembro perfeitamente que já na segunda ou terça-feira, o Corpo de Bombeiros daqui já foi visitar o General. E provavelmente todas as casas noturnas de Jaú.
Mas no General sempre fomos bem tranquilos neste quesito. Lembro-me que as pessoas, naquela semana comentavam comigo que viam as notícias e se lembravam das várias portas de emergências de lá.
Quem trabalha na noite se vê em algumas situações iguais das antes do palco pegar fogo. A expectativa, as conversas com os funcionários, os preparativos, o publico entrando..
E aquela semana foi obscura e triste para este ramo. No sábado seguinte da Kiss tínhamos o show do Koala Joe no General e confesso que empurramos o negócio. Sem clima nenhum.
Santa Maria..
O documentário do Marcelo Canelas na Globoplay trata de várias questões diferentes da série da Netflix que é uma série ficcional com uma livre inspiração. Claro que não muda o cerne da questão mas o documentário trata de questões mais abrangentes e tem o julgamento dos 04 réus como pano de fundo.
Muito embora o texto não vem aqui acusar, apontar dedo mas é básico e fácil de detectar o que realmente aconteceu. O fogo na espuma ilegal, lotação acima do permitido, a falta de sinalização de placas e luz de emergência, falta de saída de emergência, preocupação rápida e que acabou sendo mortal em não liberar os clientes sem o pagamento da comanda. E claro, o descaso dos agentes públicos na autorização de funcionamento de uma casa noturna vistosa, mas com erros crassos e mortais.
Tudo é uma mistura de descaso, ganância e um quê de amadorismo.
Uma das mães que mais participavam da luta nesses 10 anos falou uma frase tão simplista, real e sem dificuldade de interpretação de texto “Se todos tivessem feito a coisa certa, nada disso teria acontecido”. É simples e é isso.
Se os agentes públicos fizessem a exigência necessária ou não fizessem vista grossa, o dono da balada, mesmo o picareta, não teria outra alternativa senão fazer o que tem que ser feito.
Buenos Aires..
No documentário, parte grande de um episódio é dedicada a tragédia muito semelhante que ocorreu em Buenos Aires na Boate Cromanon.
Em situações muito parecidas, quase um manual do que aconteceu na Boite Kiss, em 2.004 na capital portenha morreram 194 jovens vitimas de incêndio em boite decorrente de fogos de artificio disparado pela banda também.
As lutas dos pais são iguais aos de Santa Maria. Fundação de associação, memoriais, vigílias e protestos.
Só que lá na Argentina, não só os integrantes da banda foram condenados como os agentes públicos fiscalizadores, o Corpo de Bombeiros e o prefeito de Buenos Aires em exercício da época foi afastado do cargo. Para quem assistiu a série ou acompanha, é sabido que apenas 4 réus (dois da banda e os dois sócios da casa) foram denunciados e nenhum órgão público virou réu no processo.
Memória…
O documentário mexe muito com emocional. Um morador de Santa Maria dizendo que estava indo para o terceiro enterro de amigo. “Fui agora as 7 da manhã. As 11h tenho outro. A 12h mais Um”.. Todos amigos da faculdade.
Santa Maria é uma cidade que respira universitários desde 1.960 quando da inauguração da Universidade Federal. E atraia estudantes de vários lugares do Rio Grande do Sul, até de outros estados. Uma cidade chamada Manoel Viana de 8 mil habitantes, que fica em torno de uma hora de Santa Maria, perdeu 7 jovens. Imagina uma cidade como Bocaina perder 7 pessoas de uma só vez..
Depoimento que mexem muito são dos sobreviventes. Um deles, Deovani em audiência, dizendo que na hora que começou a correria dentro da boite, ele começou a se despedir, a rezar, pedir perdão pelo que estava acontecendo é de chocar. Impactante. Precisa assistir ou procurar na internet pra ver.
Algumas nuances como depoimentos de médicos, bombeiros, policiais. legistas, enfermeiros que participaram de todo o processo da tragédia mostrando uma visão muita humana do que eles passaram.
Um legista caminhando no ginásio onde ficavam os corpos disse emocionado: “Tinha um celular de uma vítima com 120 mensagens do contato “Mãe””.
Os relatos deles me lembraram demais a pandemia aqui em Jaú. A carga pesada de não sabermos o que esses profissionais sofrem sozinho com tanta perda e tragédia que passa pela vista deles.
Mas o que angustiante, triste, perseverante e motivador é a luta dos pais, mães e sobreviventes com a missão árdua de manter viva a memória dos filhos e amigos a qualquer custo e maneira.
Não querem indenização, dinheiro. Só justiça e que a morte dos seus filhos sirvam de algum propósito. E já são dez anos de impunidade.
E eles estão lá firmes! E deixaram bem claro nas duas séries que não vão esmurecer até resolver.
Memória não morrerá!
“Morte, vela, sentinela sou
Do corpo desse meu irmão que já se vai
Revejo nessa hora tudo que ocorreu
Memória não morrerá” (Sentinela – Milton Nascimento – trilha que está na série da Netflix)
Um spoiler básico do documentário, mas que está no google. Em 2.017 o local da Boite Kiss foi desapropriado e entregue para a Associação dos Pais das Vítimas.
No local será construído um Memorial das Vítimas. Foi realizado um concurso com mais de 130 projetos enviados de vários lugares e o projeto já foi escolhido. A proposta escolhida é do arquiteto paulista Felipe Zene Motta.
Segundo o texto explicativo do memorial, “por meio da apropriação coletiva do espaço, propõe-se transformar a perspectiva existente ligada ao trauma em um espaço de educação, troca e livre interação”.
“Atinge-se assim a transformação da memória negativa que existe ali em uma oportunidade de reflexão; busca-se, na coletividade, acolhimento e apoio para as famílias das vítimas e toda a comunidade de Santa Maria”, complementa.
Na fachada do memorial a frase “Austeridade que representa o luto”. No centro do Memorial, jardim circular e cada pilar do jardim com nomes dos jovens