Olhos Verdes

A saga do jornalista Guido Puentes atrás dos Olhos Verdes em meio as ditaduras do Cone Sul

Março de 1.976. Buenos Aires.

31 de março de 1.976, a Argentina estava há uma semana vivendo a ditadura do golpe militar que começara no dia 24 de março daquele ano.

O menino Guido caminhava pelas ruas da capital.

Com seus 14 anos de idade, ele estava triste porque seu pai, General Gaston, um militar ativo do governo do seu país, tinha recusado a compra de um novo tênis e uma réplica em miniatura do carro do Carlos Reutemann, piloto argentino da Fórmula 1 daquele ano.

Guido misturava sentimentos dentro de si. Tristeza, angústia e raiva do pai que tinha negado o seu pedido.

Já eram quase dez horas da noite e o moleque já estava há várias quadras de sua casa, que ficava em Nunez, bairro tradicional que era sede da ESMA (Escuela de Mecânica de Lá Armada).

Sem querer voltar para casa, caminha mais uns três quarteirões e do nada, começa a ouvir gritos de crianças e adultos. Os barulhos entravam no seu ouvido como se fosse um tapa de mão aberta.

Guido se esconde ao lado de um muro de uma casa e um carro estaciona com os mesmos escritos que tinha no carro de seu pai.

Na hora, sai um casal e um bebê. O casal fora levado a um beco sem saída na rua ao lado. Vários tiros precedidos de um silêncio ensurdecedor…

O bebê é levado para dentro do carro. E o casal para o porta-mala. Todos entram no veículo e aceleram como se tivessem no Autódromo Oscar Alfredo Galvez.

O menino assustado se aproxima da casa, vai para o beco e não vê nenhum corpo, só várias poças que com o escuro não conseguia distinguir o que era.

O menino Guido sai rapidamente do beco e dentro de um latão de metal ouve um barulho de choro bem baixinho, bem baixinho.

Guido se aproxima e sussurra Só estou eu aqui”.

Após 30 segundos, dentro da lata levanta uma menina, cabelo loiro com olhos verdes lacrimejantes. A menina olhava para Guido e aquele olho esverdeado penetrava na cabeça do moleque como se fosse uma agulha, como se aqueles olhos falassem e perguntassem para ele  “O que fizeram com a minha família? Cadê minha irmã? Os barulhos eram de tiro? “.  

No mesmo momento, o menino vê um carro parecido com do seu pai de novo. Ele enfia a cabeça da menina dentro da lata e sai correndo do beco.

Três quarteirões do beco, estava seu próprio pai procurando ele que nem louco. O menino olha para o pai que estava com as mesmas vestimentas daqueles homens no beco.

Guido volta para a casa quieto. Sem entender muito ou entendendo tudo.  E ele só consegue enxergar o olho verde daquela menina dentro da lata.

O menino na inocência e pureza da sua idade sentia uma tristeza tão grande e uma sensação de raiva dele mesmo por estar preocupado com o brinquedo que o pai negara no mesmo dia que encontrara a menina no latão. E a menina perdeu tudo que tinha na vida.

Guido foi crescendo e percebendo o que realmente seu pai fazia e para quem realmente trabalhava.  E aos poucos foi se distanciando da sua família! E do seu país.

Sem briga, sem alarde, aos 18 anos mudou para Europa completar seus estudos e especializações da faculdade de jornalismo.

Em 1.983, no final da ditadura argentina, o General Gaston sofre um infarto fulminante e morre.

Guido retorna para o funeral do seu pai e volta para aquele beco de sete anos atrás.  E na cabeça dele só a imagem daqueles olhos verdes daquela menina.

Março de 1.985 – Buenos Aires

No ano de 1.985, os ventos da democracia sopravam pela América do Sul.

E o menino do bairro de Nunez dos anos 70 se tornara o jornalista Guido Puentes, correspondente politico do jornal madrilenho El País.  O El País foi fundado em 1.976 e sua primeira publicação se deu após seis meses da morte do ditador espanhol Francisco Franco.

O El País destina Guido para voltar para Buenos Aires e de lá cobrir os finais de algumas ditaduras sul-americanas.   Ele viaja para a América do Sul com a missão de entrevistar quatro pessoas:

O promotor Julio Cesar Strassera que seria o responsável pelo julgamento dos 9 militares que comandaram a ditadura argentina, dentre eles Jorge Videla.  O julgamento começaria logo menos, no dia 22 de abril  de 1985;

O ex  preso político uruguaio José Mujica. Após ter ficado 12 anos preso (de 1973 a 1985), Mujica tinha acabado de ser libertado pela Lei da Anistia promulgada dia 08 de março de 85. A ditadura uruguaia tinha acabado de chegar ao fim, no dia 28 de fevereiro;

O político brasileiro Tancredo Neves que tinha acabado de ser eleito Presidente da República por meio indireto, em janeiro do corrente ano. Mesmo que indiretamente, Tancredo era um dos maiores expoentes do Movimento Diretas Já, ano anterior no Brasil e comandaria o retorno da democracia nas próximas eleições para presidente;

E por fim Joan Jara, viúva do cantor chileno Victor Jara  assassinado pela ditadura chilena em 1.973 no Estádio de Chile que servia como campo de concentração de presos políticos. Joan havia voltado ao Chile em 1.984 com o intuito de resgatar a memória do seu marido.

Após cumprir suas quatro pautas, Guido volta para o seu trabalho revigorado. Retorna para a Espanha esperançoso com todo o movimento democrático se consolidando pelo continente sul americano.

Mas ainda faltava alguma coisa.. Por andava aqueles Olhos Verdes? Será que aquela menina da lata no beco de 1976 tinha achado sua irmã? Será que ela sobreviveu as barbáries da ditadura argentina?

Abril 1985.

Após cumprir toda a sua missão para o El Pais, Guido liga para o seu chefe no jornal espanhol e pede para retornar a Buenos Aires fazer mais uma matéria. Realizar a cobertura do lançamento do filme argentino La História Oficial nos cinemas do país que iria acontecer no mês seguinte.

O filme conta a história de uma professora da classe média argentina casada com um militar que descobre que a criança que tinha adotado poderia ser filha de presos políticos mortos pela  ditadura sanguinária da Argentina e do Cone Sul.

O filme retrata a luta das As Mães da Praça de Maio, entidade formada por mulheres que se reuniam na Praça de Maio e lutavam por notícias de seus filhos e netos desaparecidos na época da ditadura militar.

Após a passagem no beco em 1.976, Guido como bom jornalista que é ligou as coisas há um certo tempo e percebeu que o acontecido tinha ligação com a luta das Mães das Praças de Maio. Não era nada difícil de fazer a conexão, claro.

Saindo da sala de cinema, muita gente se abraçando, famílias reunidas emocionadas.  Afinal, era a semana da estreia do filme no país, após dois anos do fim da ditadura.

Guido chama um taxi e adentrando ao carro, ele olha para o outro lado da rua  e vê  entrando em outro táxi uma menina loirinha de dez anos.

Ele olha para cima e observa junto com a garota uma moça com o cabelo loiro, mas com um olho que ele reconheceria mesmo estando com um grau máximo de miopia e a milhas de distância.

Aquele olho verde da lata de metal. A moça, nove anos mais velha, diferente,  mas o olho “inigualavelmente igual”.

Guido fica atônito, não se mexe, totalmente paralisado e quando pensa em abordar a moça, o taxi já tinha ido embora.

Aquele jornalista se desembesta de chorar. Na mesma hora, ele pede para o taxista leva-lo ao beco onde tudo tinha acontecido. E chegando em casa, Guido pela primeira vez conta para a sua mãe do acontecido há 09 anos atrás.

A mãe, com vergonha, conta para ele que conhecia muitas famílias de militares que haviam se apropriado de bebês de homens e mulheres que foram mortos e presos pela ditadura.

Guido volta para a Espanha no dia seguinte com a missão dada e muito bem cumprida e feliz porque de algum modo a vida proporcionou o encontro das duas irmãs.

Mas um pouco frustrado porque ele gostaria demais de ter conversado com as meninas de olhos verdes.

Março de 1.986. Los Angeles

No dia 24 de março de 1.986, exatamente dez anos do início da ditadura argentina, o jornalista Guido Puentes partiu para Los Angeles fazer a cobertura do Oscar daquele ano.

O Oscar 1986 era naquele exato dia e para ele a expectativa natural da indicação da La História Oficial na categoria de Melhor Filme Estrangeiro.

E o longa saiu vencedor. Uma festa na Argentina. Parecia Copa do Mundo. Gol de Diego Armando Maradona.

Após a vitória do La História Oficial, Guido prepara um texto contando toda sua experiência desde 1.976 passando por 1.985 no Chile, Brasil, Argentina e Uruguai, lançamento do La História Oficial e o Oscar em  Los Angeles.

O texto vira o livro “Olhos Verdes” e o acontecimento do beco de Buenos Aires de 76 é o mote para Guido relatar as ditaduras do Cone Sul e a Operação Condor.

O texto alcança repercussão mundial e várias premiações.

1.987. Rio de Janeiro

O livro “Olhos Verdes” é publicado no Brasil.

Gabriela Diaz é uma bióloga argentina residente no Rio de Janeiro com sua irmã mais nova Olga.  Gabriela entra na Livraria de São José e pega o “Olhos Verdes”  na mão.

Gabriela compra o exemplar e o devora em nem doze horas de leitura. A bióloga reconhece o fato, vê a foto de Guido, reconhece do dia do lançamento do filme e tem a certeza absoluta de que a menina dos olhos verdes da matéria de Guido é ela.

Do mesmo jeito que Guido tinha uma quase obsessão em saber do paradeiro da menina, Gabriela, também tinha muita ansiedade e vontade de encontrar aquele adolescente que salvou sua vida nos idos de 1.976.

Sendo assim, sem pestanejar ela acha o telefone da editora, passa a mão no aparelho e disca.

– Boa tarde, eu gostaria do contato do escritor e jornalista Guido Puentes.

– Moça, eu tenho ordem para não passar o telefone de nenhum escritor.

– Eu entendo, mas é muito importante. Eu estou tentando falar com ele desde 1.976.

– Mas quem está falando?

– A menina dos Olhos Verdes….

– O telefone é este, minha senhora. Ele aguarda sua ligação… Há 11 anos..

FIM

“O processo ditatorial, o processo autoritário, traz consigo o germe da corrupção. O que existe de ruim no processo autoritário é que ele começa desfigurando as instituições e acaba desfigurando o caráter do cidadão.” Tancredo Neves

“O ódio por mim ficou para trás, nunca mais volte, continue em direção ao mar, sua canção é um rio. Somos paz.”  “Caminhar é que encontro a liberdade. Desejo mais estrada para continuar caminhando.” Victor Jara

“Pensávamos que era só chegar ao governo e construir uma sociedade mais justa. Descobrimos que isso é impossível. A verdadeira transformação política deve acontecer de baixo para cima, com a democracia” José Mujica

“Juízes, quero usar uma frase que já pertence a todo o povo argentino: Nunca mais ” Julio Strassera

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